Ele tinha 74 anos. Desses anos todos, ele foi alguém até por volta dos 70. Cresceu em um lar honesto. Pai, mãe e três irmãos. Moravam no Capão, não tinham luxo, mas os finais de semana sempre traziam a festa do churrasco em família, o bolo da avó e a Coca-Cola gelada.
A rua era da família também. Tinha com ela os amigos. Eram fortes juntos. O melhor dos times. A rua de baixo não podia com eles e os meninos da Mooca, sem chance. Eram importantes também na escola. Uma nota ruim aqui ou ali, mas sempre iam bem. Cresceram e cada um tomou rumo na vida.
Ele já tinha 34 anos e fez tudo certo. Casou-se com Diana, a menina mais bonita e com ela fez três filhos mais lindos ainda: João, Pedro e Tiago. Todos com nome de santo como queria a mãe. Mãe dele. Diana queria outros nomes, mas não se ganha sempre. Ele cuidou, amou e viu cada um crescer como podia. Viraram homens feitos, casaram-se, tiveram filhos, mas deram de morar longe, cada qual em uma cidade diferente.
No começo até que se viam nas festas e feriados prolongados. Depois, só no Natal ou no ano novo. Ele se perguntava onde havia errado, mas Diana tentava por panos quentes. Dizia que era assim, que criavam os filhos para o mundo. Ele se encolhia cada vez mais e nem no trabalho encontrava mais graça. Nem aguentava mais, para falar a verdade. Era funcionário público e estava cansado. Queria mesmo era se aposentar. Só não tinha feito ainda porque a vida na capital não era fácil.
E assim ele já tinha 65 anos quando Diana disse que doía a barriga de um jeito muito estranho. Ele tentou brincar que havia sido o cozido do almoço, mas ela não riu.
Do dia que Diana não riu para quando fechou os olhos definitivamente foram cinco anos de muita luta e muita dor. Ela descansou. Os filhos até vieram de volta nesta época, não com a mesma frequência, mas vieram muito e ajudaram. Só que se foram após o velório e não mais voltaram.
Ele tinha 70 anos quando ganhou um quarto em um lar de idosos e ali ele foi sendo triturado, diminuído, apagado. As pessoas deixaram de vê-lo, ainda que seu corpo ocue espaço nos mesmos lugares de sempre: no banco da praça, no vagão do metrô, na fila do pão. Tornou-se um vulto que a cidade grande engolia e cuspia de volta sem cerimônia alguma.
Ele tinha 74 anos quando colocou fogo no próprio corpo dentro da estação de metrô.
Enquanto queimava, ficou em pé, com a mão no bolso. Uns tentaram ajudar, outros só olharam horrorizados e muitos apenas seguiram a pressa de ir embora para casa. As escadas continuaram a rolar e os trens seguiram seus trajetos. Ele queimou até o fim. Quem tinha sido humano, agora era só mais um número na estatística.
Os filhos não vieram para o velório.