Somos seres feitos para ficar com os pés no chão, você não acha? Deve ser por isso que, desde os tempos antigos, os monstros mais terríveis brotavam da imaginação humana diante daquelas situações nas quais literalmente perdemos o contato com a terra. Você consegue imaginar a situação dos navegantes no meio dos mares chicoteados pelos ventos de tempestades violentas em noites escuras? As embarcações gemendo com o peso das ondas que se erguem como muralhas líquidas. Os marinheiros segurando firme no leme, mas com as mãos tremendo - não apenas de frio, mas de um medo antigo, enraizado nas histórias contadas à meia-luz. É o “Leviatã”, diria o velho marinheiro: “Se um dia o mar rugir como fera e as ondas quebrarem formando redemoinhos, fujam. Ele acordou, aquele monstro marinho gigantesco e temível, descrito no Livro de Jó como invulnerável, cuspindo fogo e envolto em escamas impenetráveis!”
Deve ser por isso que adoro os mapas. Eles são documentos que registram essa história. Afinal, os primeiros navegadores europeus não saíram viajando por aí sem fazer uso dos pontos de referência indicados nos mapas (foz de um rio, portos, pontas e enseadas) para localizar outros pontos a partir das linhas de rumo. São as famosas “cartas portulanas”, utilizadas para se deslocar, principalmente pelo Mar Mediterrâneo e por parte do Oceano Atlântico, da costa da Península Ibérica até a Inglaterra. Até mesmo os primeiros mapas-mundi elaboradas com as “terras descobertas” na América ainda foram produzidos com base nas referências terrestres desenvolvidas na produção das cartas portulanas. E à medida que se ampliaram os horizontes, foi preciso outras sistemáticas que superassem a dificuldade de desenhar todo o planeta em uma superfície plana. “As armas e os barões assinalados/ Que, da ocidental praia lusitana/ Por mares nunca de antes navegados [...] A quem Netuno e Marte obedeceram./ Cesse tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta” (Luis de Camões. Os lusíadas, 1572). Pois é... a aventura por caminhos até então desconhecidos que atravessa séculos e culturas.
Com o corre-corre da vida urbana, hoje acreditamos que o tempo é maior do que o espaço, nos deixando esquecer desta condição existencial de fincar os pés no chão. Mas sabemos muito bem pelas tradições bíblicas que o Leviatã continua vivo, encarnando o medo do caos e das forças indomáveis da natureza. É o medo de perder os pés fincados no chão, o vínculo da terra como referência das ações humanas. Medo do Leviatã.