O jovem e vaidoso psicanalista recebeu a carta com indignação, haja vista os comentários dirigidos à sua pessoa, sobretudo, aqueles que duvidavam de sua sanidade, mas também, secundariamente, aqueles que questionavam sua ciência, tão nobre e apreendida em anos de dedicados estudos. Pensou bastante no que deveria fazer e ponderou que, certamente, o Taciturno brincava e tripudiava com ele e seus colegas de trabalho. Foi, então, à repartição pública, dando a conhecer a todos que as questões profundas que afligiam nosso personagem eram, em realidade, resultado de completa indisposição ao trabalho e ao convívio social.
Todos receberam com espanto as considerações do doutor, embora soubessem que fosse uma possibilidade real, diante da inteligência e empáfia do velho funcionário. Chamaram o coitado, como se referiam a ele nos últimos tempos, e com certa arrogância zombeteira o questionaram a respeito de suas palavras, dirigidas ao psicanalista. O Taciturno só conseguia sorrir, ironicamente, diante de todos à sua frente, que impacientes, esperavam por explicações. Que vieram, em eloquentes e sinuosas palavras, pronunciadas com vigor, como se há muito não falasse, realmente:
___ Então vocês descobriram meu segredo? Hahahah, como são ingênuos, como podem ter achado que eu, justo eu, tivesse algum problema psíquico? Se esqueceram de meu erudito trabalho? De todas as leituras que venho fazendo, há anos? Procurei, nos últimos tempos, brincar com vocês, citando Kafka, Melville, Heidegger, Camus, Foucault, Sartre e muitos outros que, de alguma maneira, inspiraram meu comportamento nos últimos meses. Sim, vinha fazendo, desde então, um experimento social, avaliando, desse modo, a intolerância de todos.
Meu objetivo, contudo, não é tão nobre. Quero ser demitido, mas, sem perder meus direitos trabalhistas, duramente conquistados, nesses anos e anos de luta, velada, de classes (nesse ponto me amparo em Marx, como devem imaginar). Não me importo, tampouco, com as opiniões que porventura possuam a meu respeito, me deixem ir, e não terão mais dissabores, com minha presença. Como disse o criador a Moisés: “E todas estas bênçãos virão sobre ti e te alcançarão, se ouvires a voz do Senhor teu Deus”, hahahaha, agora, cito até mesmo a Deus para que, definitivamente, me deixem em paz, pois é o que terão, do criador, se assim o fizerem.
O que pensam que somos? Trabalhadores? Sempre dispostos a acatar ordens, a fazer coisas que o desagradam? A servir a convenções sociais desnecessárias? Não pensam nisso, pelo amor de Deus? Apenas se dão a viver, todos os dias, sem pensar? Duvido que aqui alguém goste do trabalho, das roupas adas, das contas a pagar, do ordenado parco, da vida sem aventuras, de todos os dias, a mesma coisa? Pensem consigo, se estão satisfeitos? Será que sou que precisarei dizer? E esse rapaz, quem pensa que é? Outro Moises? A nos conduzir no deserto da existência? Pobre coitado, vá daqui com o raio que o parta. Para mim, já basta. Recolherei minhas coisas agora mesmo e, enfim, adeus e ar bem.
Ninguém disse palavra.